quem não ama uma boa fofoca?
📱Tá sabendo da última? Não? Ih, então se prepara…
Sabe aquela pessoa que, nas palavras de Rita Lee, é “tão galera…”?
Pois então, eu acho que até já fui uma delas em alguma fase vivida; acho também que muitas pessoas (especialmente as mulheres) passam por uma fase dessas, ou então vivem num dos limiares entre ser bonzinhos com uma dose de puritanismo e ser “totalmente desapegados” de julgamentos.
Em qualquer dos extremos, o que se está buscando é aceitação e pertencimento.
Outro ponto em comum desses extremos é o discurso – recorrentemente hipócrita – de que fazer fofoca é horroroso, patético ou simplesmente errado.
A garota da galera não faz fofoca porque isso é coisa de mulherzinha; o puritano não faz fofoca porque é errado julgar, e ainda tem aquele que não faz fofoca porque falar dos outros é uma perda de tempo. No off, todos eles fazem fofoca, ou criam uma narrativa de superioridade intelectual/espiritual para justificar o isolamento que advém de não compartilhar suas dores com nenhum coletivo.
Quem não ama uma boa fofoca? Tá certo, talvez não sempre, não o tempo todo, não daquele jeito obsessivo que a sua tia tem de só conseguir falar coisas negativas sobre todas as pessoas ao seu redor. Mas convenhamos: fofocar é uma fonte de alívio.
É uma oportunidade de lembrar que também as outras pessoas têm seus defeitos; que há outros que também se sentem perdidos; que aquela pessoa que te fez mal ou que você invejava gratuitamente também experiencia inseguranças e erros.
Fofocar também é um ato de confraternização: é quando nos identificamos com o outro e compartilhamos nossos valores, nossas convicções e, sim, numa nota nem tão elegante, nosso julgamento também.
Mais do que isso, a fofoca é uma troca de opiniões e informações, e é por isso, justamente por isso, que ela foi batizada e reputada como uma atividade feminina e inadequada.
Para quem ainda não leu “Calibã e a bruxa” de Silvia Federici, eu me sinto na obrigação de contar que a fofoca sofreu um rebranding durante a idade média:
Em Calibã e a bruxa, a filósofa Silvia Federici (2017) menciona a palavra fofoca (gossip), nos dizendo que, na Idade Média, essa palavra significava “amiga”, e que, no período da Inquisição, na chamada “caça às bruxas”, essa palavra “mudou de significado, adquirindo uma conotação depreciativa” (p. 335) […] isso foi “mais um sinal do grau a que foram solapados o poder das mulheres e os laços comunais” (p. 335).
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O marketing é realmente uma ferramenta poderosa e nada recente. Essa estratégia de conotar o termo “gossip” ou “fofoca” como um ato perverso cumpre uma finalidade também já conhecida e discutida por literais séculos: a dominação.
“Há também, no plano ideológico, uma estreita correspondência entre a imagem degradada da mulher, forjada pelos demonólogos, e a imagem da feminilidade construída pelos debates da época sobre a “natureza dos sexos”, que canonizavam uma mulher estereotipada, fraca do corpo e da mente e biologicamente inclinada ao mal, o que efetivamente servia para justificar o controle masculino sobre as mulheres e a nova ordem patriarcal.”
“Calibã e a bruxa” por Silvia Federici
E o rebranding foi pesado, viu?
Derivada dos termos ingleses arcaicos God [Deus] e sibb [aparentado],gossip significava, originalmente, god parent [padrinho ou madrinha], pessoa que mantém uma relação espiritual com a criança a ser batizada. Com o tempo, entretanto, o termo passou a ser usado em sentido mais amplo. Na Inglaterra do início da era moderna, gossip se referia às companhias no momento do parto, não se limitando à parteira. Também se tornou um termo para amigas mulheres, sem conotação necessariamente derrogatória. Em todo caso, a palavra tinha fortes conotações emocionais. Reconhecemos isso quando observamos a palavra em ação, denotando os laços a unir as mulheres na sociedade inglesa pré-moderna (FEDERICI, 2019a, p. 3-4).
Ao depreciar uma palavra que antes indicava confraternização entre mulheres, esse rebranding “ajudou a destruir a sociabilidade feminina que prevaleceu na Idade Média, quando a maioria das atividades executadas pelas mulheres era de natureza coletiva e, ao menos nas classes baixas, as mulheres formavam uma comunidade coesa que era a causa de uma força sem-par na era moderna (FEDERICI, 2019, p. 3)”.
[…] por meio dessa palavra, gossip,
podemos acompanhar dois séculos de ataques contra as mulheres no nascimento da Inglaterra moderna, quando uma expressão que usualmente aludia a uma amiga próxima se transformou em um termo que significava uma conversa fútil, maledicente, isto é, uma conversa que provavelmente semearia a discórdia, o oposto da solidariedade que a amizade entre mulheres implica e produz.
E por mais que nos vejamos “menos dominadas” hoje em dia, dar um sentido negativo aos comportamentos “de mulher”ainda exerce muito poder sobre o papel que escolhemos assumir em nossos grupos e comunidades.
A menina “da galera” não faz fofoca…
A garota que não fofoca, que não usa muita maquiagem e que prefere sair com os caras do que com as minas é a que, geralmente, é preferida pelos homens para ocupar o papel de amiga. Isso acontece porque os homens detestam fofoca, certo? Erradíssimo.
Essa garota é a favorita entre os homens porque (1) ela está isolada e recorre à aprovação masculina para receber validação e (2), se ela não faz fofoca, ela ajuda a sustentar a não-responsabilização masculina dentro de seus relacionamentos.
Não acho, necessariamente, que este seja um movimento calculado pelos homens de maneira geral, mas conscientemente ou não, eles desfrutam desse conforto.
[Fofoca da vida real]
Eu mesma já passei por isso: quando fofoquei (e infelizmente digo isso sem orgulho) para um grupo sobre um conhecido que traiu a namorada (minha amiga que morava em outra cidade) com uma amiga deles (do casal), a reação da então namorada foi me pedir para não fazer fofoca sobre o relacionamento.
Aquele momento foi muito importante para o meu crescimento: ali, enxerguei uma linha quase invisível dividindo a sensatez da toxicidade – tanto de minha parte quanto da parte do então namorado dela.
Isso porque a atitude de “garota legal” dela estava sustentando a falta de autorresposabilização do seu namorado, que mentiu ao ser questionado sobre a traição e fez menção à fofoca como sendo uma fonte de discórdia entre o casal.
Eventualmente ele foi desmascarado. Graças à fofoca.
A propósito, do meu ponto de vista, essa persona de “garota legal” adotada pela minha amiga (e por mim e por tantas outras mulheres) naquele momento, refletia aquela busca por validação e pertencimento que acabo de mencionar.
Quando nos vemos isoladas num coletivo majoritariamente masculino, adotamos os hábitos, discursos e até as opiniões deles como nossas, muitas vezes sem perceber, a fim de conseguirmos nos identificar com o nosso entorno.
Os nossos agora ex-namorados não precisaram amadurecer e assumir responsabilidade por seus atos, porque eles estiveram, o tempo todo, apoiados por uma rede ideológica muito minuciosamente tecida, que articulava não só a fofoca como ato perverso, mas todos os comportamentos de confraternização e de exigência (de um parceiro minimamente comprometido) como atitudes “de mulher” – e de mulher perversa, ainda por cima.
Então, assim como todas as coisas têm um aspecto luz e um aspecto sombra, a luz da fofoca é esta: informar, disseminar e cobrar responsabilidade.
Quanto ao aspecto sombra, acredito que este ocorra quando a fofoca se torna outra coisa: se torna boato, falácia, difamação e indiscrição. Pessoas que fofocam por hábito geralmente acabam transferindo sua atenção de suas próprias questões para as questões alheias, como que pra se distrair do desconforto ao invés de enfrenta-lo com autorresponsabilidade.
Mas é importante lembrar do rebranding… difamação e fofoca são (ainda hoje) coisas diferentes.
E tem outro ponto…
O julgamento não precisa ser descartado
[fofoca da vida real 2]
Esses dias estava conversando com um amigo, o Lázaro, e ele mencionou que estava lendo o livro “O milagre da Manhã”, me perguntou se eu já tinha lido, e comentou que estava gostando, mas que certos pontos do livro lhe soavam muito… comerciais, digamos.
Eu me identifiquei completamente com a fala dele, e contei que, anos atrás, quando li O Milagre da Manhã, na minha inocente e tola falta de experiência de vida, eu adotei cada palavra do livro como uma verdade absoluta.
Passei a acordar as 5 da manhã, fazer 10 minutos de Yoga por dia, 10 de meditação, 10 de leitura, e tudo mais que o autor orientava.
Devo dizer que este foi um ponto de virada muito positivo em minha vida e, por isso, ainda sinto muita gratidão por esse livro, no entanto, também devo dizer que, no longo prazo, sustentar uma manhã milagrosa começou a parecer forçado e desalinhado com as minhas necessidades.
Isso aconteceu porque eu li o livro sem uma coisinha chamada filtro: desconsiderei que eu e o autor temos sexos diferentes, histórias de vida diferentes, condições financeiras diferentes, corpos diferentes…
O que é válido para ele poderia não ser inteiramente válido para mim – e saber disso é minha responsabilidade, e não do autor.
Da mesma forma, você vai ler este texto através dos seus filtros, e vai aderir aos pontos que fazem sentido com a sua trajetória e com as suas necessidades.
E é por isso que, pessoalmente, eu não acho que devamos “julgar o julgamento”. Julgar é uma parte inata de ser um humano, e necessária também. Sem esse filtro, nos tornamos muito vulneráveis às influências externas, e pouco firmes em nossas próprias convicções.
Claro, tudo numa medida equilibrada.
Eu jamais incentivaria você a sair por aí julgando as pessoas, mas quando o julgamento acontecer dentro de você, eu te incentivo a refletir sobre ele: pergunte-se coisas como “o que ele está apontando sobre mim?”, “que necessidades eu sinto que estão sendo desrespeitadas por essa pessoa/situação?” e, se você não conseguir concluir nada, confraternize.
Faça uma fofoca e se exponha às opiniões e informações coletivas, permita-se nadar um pouco no mar de falações antes de decidir o seu rumo.
Recomendações
Primeiro, quero recomendar “Calibã e a bruxa” por Silvia Federici, que eu li em um clube de leituras organizado pela Editora Blimunda, com quem já tive a honra e o prazer de trabalhar.
Também, vou deixar um achado: o PDF gratuito d’A história oculta da fofoca – mulheres, caça às bruxase resistência ao patriarcado [Silvia Federici]
E, no mais, vou lhes desejar que ótimas e construtivas fofocas sempre apareçam em seu caminho, para informar, direcionar, aliviar e acolher a pessoa maravilhosa que você é!
Até a próxima!
Um abração do tamanho da lua,
Bibiana.