eu sou todas as rezas que minhas avós fizeram por mim
nunca entendi a devoção das minhas duas avós ao catolicismo. também não entendia a devoção de qualquer pessoa crente a qualquer que fosse sua causa. e eu pensava isso com uma soberba inocente, achando que eu não era devota aos meus cultos, fossem eles os da cultura popular ou dos esteriótipos que eu procurava incorporar.
me perguntava por que aquelas (e outras) velhas senhoras escolhiam passar seu tempo reunidas ao redor de uma vela, rezando o terço por horas a fio, ao invés de assistir TV, conversar ou passear.
lembro-me de pensar que a aposentadoria era uma viagem inevitável ao fanatismo religioso, e de me prometer que eu usaria a minha velhice fazendo coisas mais interessantes.
às vezes, também achava que minhas avós e todas as suas amigas somente frequentavam as missas semanais e todos aqueles eventos da igreja porque temiam decepcionar seus pais, já mortos, ou porque temiam ser castigadas por Deus.
como eram simples os raciocínios de uma criança que nunca perdera nada nem ninguém. e como eram arrogantes, também.
de tanto ouvir que eu era uma criança inteligente, passei a presumir que eu sabia mais sobre a vida do que a maioria das pessoas. comecei a acreditar que minhas razões para não frequentar a igreja, não rezar e não ser católica eram originais e graciosamente insurgentes.
“nós também estudamos a inquisição, bibiana.” diziam os meus pais. “nós também não concordamos com os horrores que a igreja fez no passado!”
“então por que ainda são católicos?” eu questionava, teimosamente.
minhas perguntas, no entanto, foram ficando cada vez menos frequentes e parecendo cada vez menos relevantes conforme eu compreendia que as pessoas escolhiam a tradição, em parte, para se sentirem pertencentes — uma dádiva que me é estranha até hoje —, então parei de julgar.
eu queria me sentir pertencente também. mas não tanto, a ponto de frequentar entediantes missas. e não ali, sendo conivente com uma fé construída em cima de tantas proibições.
minha busca incessante por pertencimento me fez cometer vários erros, mas o único de que me arrependo é não ter percebido mais cedo que eu já pertencia: em cada uma das rezas das minhas avós, lá estava eu, sendo mencionada, sendo abençoada, sendo lembrada e amada.
o privilégio de viver uma vida sem precisar lidar com a morte, a doença, a violência e o abandono me fez cética. eu não precisava da religião, da reza, da fé — alguém já fazia tudo isso por mim.
então eu podia criticar ou simplesmente não entender nada daquilo.
cresci uma pessoa cética, que muito aos poucos foi se entregando à magia de ter fé. mas minha fé tinha uma condição: abandonar a imagem de Deus. eu acreditaria somente em mim e no Universo.
quando as coisas davam errado, eu não podia rezar. eu tinha que resolver tudo, afinal era eu uma expressão da fonte criadora universal. as respostas deveriam existir em mim.
e foi assim que vivi o luto de perder a vovó Santa. sua morte não me doeu, porque eu sabia que era uma simples passagem. eu ainda conseguia senti-la. sabia que sua vida fora longa e bem vivida — esse foi outro privilégio que ela me deu, e que eu, arrogantemente, presumi ser maturidade minha.
sem nenhuma anunciação, numa noite de lua minguante em que eu, também, me encolhia diante da complexidade do mundo, fechei meus olhos e minhas duas avós – a viva e a morta — inundaram meu corpo inteiro.
em minha mente, imagens desconexas apareciam e se desmanchavam uma em cima da outra, mostrando uma sequência de acontecimentos que estiveram, até então, fora do alcance da minha percepção.
eu vi minha vó superando o luto da perda de um filho, depois vi a vovó se percebendo grávida com uma criança ainda pequena no colo; minha vó novamente apareceu, sentindo saudades de um neto, e outra vez uma imagem da vovó se sobrepôs, dando à luz um filho, que nascia num mundo de incertezas.
as imagens, quase aleatórias, iam sendo costuradas umas nas outras por um detalhe comum: em todas elas, minhas avós estavam rezando.
subitamente entendi tudo. primeiro com o coração — minha mente ainda nem encontrou as palavras para esse atino.
entendi que as rezas das minhas avós nunca foram um rito de “boa moça”, nem uma prevenção contra a ira de Deus. elas foram, em todas e em cada uma das vezes, uma necessidade.
uma necessidade da alma.
em se agarrar a algo concreto durante um temporal de pavor, dúvidas ou aflição.
minha criança — minha tão inteligente criança — interior, me pergunta: como você pode dizer que a fé é algo concreto?
e eu lhe respondo, minha inteligente, convencida e sublime criança, que a fé é a única coisa concreta que um ser humano realmente é capaz de possuir. o resto é tão provisório e tão frágil quanto a própria infância.
às minhas avós, Nélis e Santa, vou dedicar todas as minhas entediantes rezas, até eu morrer.