eu sei quem sou quando corto o cabelo
mas quem sou eu enquanto espero o cabelo crescer?
cortei meu cabelo pela última vez em setembro do ano passado — só as pontas, porque já tinha me desfeito dos cabelos longos muito antes disso.
ele sempre foi um símbolo da minha força, e assim acredito que é para muitas pessoas. é volumoso, grosso e apesar de liso, é um tanto rebelde. faz jus à natureza de sua dona: convencional, mas nem tanto.
li alguns livros sobre a psicologia que se esconde por debaixo dos caracóis de alguns cabelos, sob as mechas de outros e que por vezes se camufla sobre as cabeças raspadas.
talvez o cabelo seja o delator mais direto da personalidade de uma pessoa: aqueles lisos, natural ou quimicamente, são os cabelos da pessoa que caminha conforme um ritmo que é tradicional para si e para a cultura do lugar em que vive; são os cabelos adequados, sensatos, por vezes recatados e definitivamente um tanto calculistas.
os cabelos crespos e encaracolados, em qualquer das suas nuances, denunciam uma personalidade rebelde, inconformada com os valores incoerentes e hipócritas da sociedade, muitas vezes transgressora e revolucionária na sua forma de viver. enganam-se as pessoas que somente enxergam o protesto como ato de revolução, pois muitos subvertem silenciosamente: amando a um diferente, celebrando o sexo sem tabus, estudando sobre o que está oculto, curando.
já os cabelos desajeitados são, claro, dos desajustados. cabelos que não pertencem a acessório nenhum; personas incapazes de se adequar, às vezes por rebeldia, às vezes por puro costume.
a quem nunca ocorreu uma vontade de raspar até o último fio de cabelo? a ideia já foi atraente a todos nós, eu presumo, mas poucos têm coragem de dar-lhe cabo.
uma pessoa que se desfaz de seus cabelos tenta se desfazer de seu passado, pra renascer como um sobrevivente: por detrás de todos os acontecimentos, sempre existiu alguém.
também raspa os cabelos aquele que precisa se apropriar de sua própria vida — chega de sonhar acordado, é preciso agora construir. bastante masculina a decisão de se desfazer dos cabelos, não porque o corte é associado ao gênero, mas porque uma cabeça nua não tem mais medo de ser uma vítima, não lhe sobram inseguranças para esconder. ser aceita é a única opção. ou engolida.
quem corta longos cabelos pela metade procura a praticidade: chega de depender, basta até mesmo de co-depender. é a escolha das pessoas que precisam, inevitavelmente, assumir responsabilidade por suas escolhas, e bancá-las geralmente exige um nível bastante desconfortável de ação.
ter os cabelos curtos é dizer adeus, mesmo que temporariamente, à inocência dos nossos sonhos inatingíveis, e começar a construir os sonhos possíveis, da base até o topo, para talvez, assim, chegar mais perto daqueles sonhos mais altos, que então passam a ser também plausíveis.
e os cabelos longos, presos ou soltos, pertencem às pessoas que precisam ou querem proteção. eles representam a busca inconsciente por segurança, operando como um escudo, que custodia as mais frágeis fantasias, mas também as maiores ambições.
são imperativos aqueles momentos em que cortamos os cabelos, e eles nos dão a chance de reconhecer partes esquecidas, escondidas ou mesmo inexploradas de nosso ser.
quando cortei os meus compridos cabelos pela primeira vez, anos atrás, eu dei à luz uma bibiana que nunca antes existira: menos sensata, mais corajosa, menos dependente e mais capaz.
mas senti saudade da bibiana que podia sonhar e que via, em tudo, um pouco de poesia. senti saudade de ser protegida depois de muito me proteger sozinha. senti saudade de ser vista como uma menina e não como uma mulher.
não que exista forma de voltar atrás, e não que exista pudor algum sobre minhas realizações enquanto adulta; eu só senti saudade de ser meu eu sensível e frágil, porque é justamente essa parte de mim que consegue criar!
então resolvi deixar o cabelo crescer novamente. e me perdi tantas vezes ao longo do processo…
me olho no espelho diariamente, insatisfeita, com um cabelo desajeitado e indomável que não está curto o suficiente para ser prático, nem longo o bastante para ser apreciado.
quem sou eu enquanto meu cabelo está crescendo?
por vezes me vejo um ser indefinido, à espera de que, na manhã seguinte, eu faça sentido de mim mesma, e me reconheça de novo como alguém por quem valha a pena lutar.
em outros momentos me sinto boba, idiota. esperar o que? a vida não pausa pra esperar seu cabelo crescer. e daí que ele não se ajeita? curto, comprido ou médio, a reclamação seria a mesma!
mas há algo ali, eu juro que há. algo insistente, permeando entre as mechas amassadas pelo travesseiro e aquelas obstinadamente penteadas que quase alcançam os meus ombros, quase.
há algo ali, sim. uma dúvida. dúvida de mim? ou um impulso, de picotar todo o cabelo novamente? não sei o que é, mas parece que me observa. com certo desdém.
talvez seja eu mesma – mas um outro eu, que ainda não conheço bem. o eu da transição.
isso. essa sou eu.
um eu indefinido, que não cabe na práxis do cabelo curto e também não se firma na vastidão delirante do cabelo comprido.
como é desconfortável lembrar que algumas coisas levam tempo pra crescer, pra mudar. cortar o cabelo foi tão fácil…
mas esperar ele crescer é encarar, todos os dias, uma verdade ainda indeterminada: não se tem certeza de como o cabelo vai ficar, grande, nem se quer voltar atrás. tudo o que se pode fazer é esperar para ver.
e assim me encontro também em relação a outras partes da vida. totalmente imprecisa, aguardando o crescimento das coisas que foram tão fáceis de plantar (porque no plantio eu estava ocupada), e serão ainda mais fáceis de colher.
esperar é o que mata: a ilusão, a distração e a memória.
quem sou eu enquanto espero? e quem é que eu quero ser?
se o único jeito de sair dessa fase é passando por ela, que pelo menos eu seja uma pessoa boa enquanto a permeio — boa pra mim.
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