decolonização do pensamento espiritual
desenhando a carta do hierofante e falando sobre decolonização.
a decolonização do pensamento espiritual é um tema que eu venho abordando desde 2023 no meu podcast. acho que a gente consome conteúdos feitos por pessoas com quem a gente consiga se identificar, e por isso me propus, desde então, a falar sobre essa questão. minha intenção é servir como uma porta de acesso entre a realidade de pessoas parecidas comigo, ou simplesmente de pessoas que consomem o que eu crio, e a visão de mundo de outras culturas.
mas é muito importante que a gente se abra pra consumir de quem tá produzindo a partir do seu próprio ponto de vista, e não só de observadores como eu. e aí eu cito artistas indígenas, negros, muçulmanos e de todas as culturas distantes da nossa própria. distantes, mas ao mesmo tempo, incorporadas, né. porque a gente enquanto brasileiro tem recortes de todos os lugares na nossa própria cultura.
meu objetivo com esse episódio é refletir sobre os efeitos que a colonização teve e tem até hoje na nossa espiritualidade, nas perspectivas que temos sobre espiritualidade, religião, e de que maneira essas perspectivas afetam a nossa vida na prática. afinal, a espiritualidade é uma lente através da qual a gente pode observar a realidade, como eu falei no episódio 0.
por isso hoje eu tô ilustrando o arcano 5 do tarot, o hierofante, que vai servir como plano de fundo do nosso papinho.
um dos maiores embasamentos que eu usei pra escrever esse episódio, foi o livro “as veias abertas da américa latina”, do eduardo galeano, e aliás, recomendo muito a leitura. vou deixar link pro livro na descrição. e embora eu não vá citar o livro diretamente, quero citar uma frase do autor, em que ele diz: “a primeira condição pra modificar a realidade, consiste em conhecê-la.
eduardo galeano cobre em “as veias abertas da américa latina”, uma sequência muito longa de acontecimentos aqui no nosso continente desde a colonização, mas sob uma perspectiva não europeia. esse livro mudou muito a minha percepção sobre a realidade e me trouxe um novo senso de pertencimento à comunidade latina.
em meio a tantos discursos de separação, é um abraço ler a nossa história contada por um de nós, e lembrar que nas nossas veias corre a ancestralidade de muitos povos, alguns dos quais infelizmente nunca vamos conhecer, outros, marginalizados pelo embranquecimento da história. é importante lembrar que somos parte dessa realidade.
já a carta do hierofante como embasamento é um tanto contraditória: o hierofante, tradicionalmente, representa os dogmas religiosos, a visão de mundo cerceada por estruturas sociais eurocentristas. ele existe no tarot para traduzir a burocratização de relações, pra oficializa-las. em vários baralhos, essa carta se chama “o papa”.
e como nessa série de episódios eu estou desenhando um baralho no meu traço, decidi politizar o meu hierofante, desconstruindo sua caracterização católica, e fazer dele um Pajé, título oriundo do tupi, e que é usado em diversas culturas indígenas da América do Sul para designar um líder espiritual, curandeiro ou xamã.
também vou desenhar a minha versão daquele meme clássico em que os jesuítas dizem “sem nós, vocês ainda estariam cultuando o sol”, e o indígena responde “cara, o sol é real.
e pra aprofundar um pouco mais a reflexão que esse meme provoca em todos nós – quer dizer, pelo menos naqueles de nós que têm um cérebro funcionando – não posso deixar de citar ailton krenak, autor indígena brasileiro. nas palavras dele:
A grande diferença que existe do pensamento dos índios e do pensamento dos brancos, é que os brancos acham que o ambiente é "recurso natural", como se fosse um almoxarifado onde você vai e tira as coisas, tira as coisas, tira as coisas.
Pro pensamento do índio, se é que existe algum lugar onde você pode transitar por ele, é um lugar que você tem que pisar nele suavemente, andar com cuidado nele, porque ele está cheio de outras presenças.
a ideia de que os indígenas viviam mal antes da chegada das embarcações europeias vem da narrativa criada pra justificar elas. os europeus trouxeram doenças, cometeram genocídios contra a população nativa e ainda impuseram sua fé sobre ela; além disso, submeteram esses povos ao seu regime imperialista e, hoje, capitalista a que ainda estamos submetidos.
muitos nativos explicam que, antes da invasão de 1500, como não havia um sistema monetário a que estivessem submetidos, o que existia de maior valor para as sociedades daqui eram as relações interpessoais, familiares e comunitárias.
ao invés de contar com o valor arbitrário de um pedaço de papel para que os outros trabalhassem para você, as sociedades nativas se organizavam de modo que o trabalho conjunto proporcionasse uma vida decente para todos e cada um. assim, pra você não ser abandonado na velhice, por exemplo, você tinha que ser uma pessoa decente, e a comunidade cuidaria de você com respeito.
esse exemplo é só pra ilustrar uma discussão muito atual sobre os o cuidado, sobre como, por eras, sob o regime capitalista, contamos com a mão de obra gratuita das mulheres para cuidar dos filhos e idosos, sem receber, então, o dinheiro (que representa justamente o poder e a liberdade na nossa sociedade). é esperado que as mulheres cuidem gratuitamente de todos. essa questão vai muito além da sua filha feminista não querer ter filhos: é um problema estrutural.
quando a estrutura de uma sociedade parte da premissa de que o respeito e o senso de comunhão rege suas relações de trabalho, afeto e usufruto do espaço, ninguém fica submisso à tirania.
e é tão difícil pra você acreditar que esse mundo é possível porque a sua mente e o seu pensar social e espiritual estão profundamente colonizados.
decolonizar o pensamento espiritual é admitir que existem formas de viver alheias ao sistema. na prática é muito difícil vivenciar essas formas plenamente – impossível, eu diria – porque estamos inseridos num sistema que vende a nossa liberdade (de pensar, de consumir e de tempo de vida) em troca de um pedaço de papel ou de um número no aplicativo do seu celular que nos dá um direito que sempre foi nosso: terra, moradia, comida, e tempo.
outro exemplo do quanto estamos colonizados ainda, mesmo depois do processo de descolonização da américa latina, são as 3 refeições por dia. a ideia de que devemos comer no café da manhã, almoço e janta é resultado da colonização. os europeus perceberam que os indígenas se alimentavam intuitivamente, quando sentiam fome. e na tentativa de se distanciar dos animais e do comportamento selvagem deles, criou-se essa ideia de que os civilizados comem em horários próprios – uma narrativa que sustenta, também, a jornada de trabalho que vai desde o amanhecer até o anoitecer, e tem um intervalo para almoço.
mas a relação que temos com a ideia de alimentação correta vai muito além de comer nos horários certos. essa, junto de outras narrativas, cria a ideia inconsciente de que somos seres afastados da natureza, quando na verdade, somos parte dela. melhor: somos a própria natureza, em uma de suas expressões.
só que, criado esse distanciamento artificial entre homem e natureza, abre-se espaço pra criar narrativas que preenchem essa distância. uma delas é a narrativa espiritual.
segundo os dogmas católicos e hoje evangélicos também, precisamos nos submeter a todo um aparato de controle social para conter nossa selvageria.
mas se olharmos profundamente pra esse aspecto, perceberemos que os comportamentos que os dogmas e morais religiosos tentam conter são precisamente resultantes da estruturação capitalista da sociedade, em que alguns indivíduos das comunidades marginalizadas precisam recorrer ao crime pra ter direito àquilo que sempre deveria ter sido seu: terra, moradia, comida, e tempo.
não que eu esteja tentando justificar a criminalidade com essa simples afirmação, atualmente enfrentamos uma realidade muito mais complexa do que roubar para ter comida. mas toda essa complexidade também é resultante da falta de acesso, da falta de tempo, da falta de bem-estar, segurança, afeto e tudo mais de que um ser humano precisa.
enquanto o papa e o hierofante, nos baralhos mais tradicionais, representam os dogmas e as tradições estruturais dos impérios europeus, eu quis que o meu Pajé representasse as tradições de uma cultura descolonizada, anti-imperial.
o Pajé, responsável pelo conhecimento espiritual, curativo e mediador de seu povo, está representado na minha ilustração pelo Luz, que é o espírito de um gatinho laranja. escolhi o luz para ser o Pajé porque ele já passou pelo plano físico e, claro, tem uma conexão inegável com o mundo espiritual.
no meu tarot, ao invés do luz ser detentor de uma verdade absoluta, ele é facilitador das pessoas e seus respectivos caminhos individuais. a única tradição a que ele faz referência é a do respeito mútuo, de se entender como natureza e honrar cada uma de suas expressões – a natureza que está fora, e a que está dentro; a juventude e a velhice. ele não é dogmático, é tolerante. ele é descolonizado e tem o dever de descolonizar quem quer que o encontre.
você pode aprender a ler o tarot através da abordagem não-violenta (abordagem inspirada em povos nativos como os toltecas, os yogis etc) pelo clube do tarot.
e pode ler tudo o que eu escrevo no meu substack ou no meu livro de HQs. tem link pra tudo isso na descrição.
vou deixar também alguns links para os livros dos autores que mencionei neste episódio.
por hoje, é isso…
tcha-au!
links
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L I V R O S
dahora demais!
acho que vc foi a mimha descoberta do mês, a forma que vc escreve o assunto com leveza e bem fácil de entender...eu genuinamente ameei, vou logo logo ir ouvir no podcast 🪻