oi, o meu nome é bibiana e eu sou uma escritora e cartunista brasileira independente.
boas vindas ou boas vindas de volta! este episódio está disponível para assistir no YouTube e para ouvir no meu podcast em diversas plataformas, e você pode acessar tudo isso pelo meu site.
bem, no episódio zero do bibicast, eu contei um pouco sobre mim e sobre por que decidi começar esse projeto; também falei sobre começos, recomeços e sobre o arcano zero do tarot, que na maioria dos baralhos se chama “o louco”. ele demarca o ponto de partida de uma jornada de 78 momentos, 78 aprendizados ou, se preferir, 78 cartas de tarot.
cada episódio do bibicast será sobre uma dessas 78 lições.
hoje, utilizando a carta do mago como plano de fundo, quero falar sobre como as linguagens que utilizamos moldam a nossa percepção sobre nós mesmos, o mundo, a vida e todos os seus acontecimentos.
quando comecei a estudar sobre espiritualidade, aos 11 anos, me emocionei com algumas teorias, me apavorei com outras e, como muitos que se espiritualizam, me senti importante demais. achava que, porque eu era mais sensível a certos temas, eu era mais espiritualizada, e portanto mais protagonista do mundo.
pouco a pouco, esse véu de fantasia começa a ser rasgado: pela autoestima colocada à prova em interações sociais, pelos impactos que as estruturas tais como o patriarcado e o capitalismo têm sobre nossas vidas, por alguns anos de terapia e pelo amadurecimento que, provavelmente, é uma combinação de todas essas vivências.
e porque é muito cruel ver o mundo a olhos nus, me apeguei à comunicação não-violenta como abordagem para falar sobre assuntos ditos espirituais.
falei um pouco sobre a CNV no episódio anterior, e por isso não vou discorrer sobre ela hoje; menciono ela apenas para dizer que, ao falar sobre temas sensíveis às pessoas como suas crenças espirituais, sua visão de mundo e suas convicções, aprendi a importância de escolher as palavras com cuidado.
por isso decidi, em 2022, começar a ler o tarot através da abordagem da CNV, e posso tranquilamente dizer que esses dois recursos me ajudaram a enxergar partes muito profundas de mim e dos outros, a que eu definitivamente não teria acesso de outras formas.
o tarot me ajudou muito a identificar aspectos sutis, sensíveis ou desconfortáveis da realidade e organizar meu entendimento sobre essas questões; já a CNV me permitiu elaborar sobre elas, a comunicar minhas necessidades e a silenciar vozes hostis internalizadas.
eventualmente, me dei conta de que estive usando o tarot e a cnv como lentes para observar o mundo.
em 2017 eu li o livro “Trocando as Lentes”, de Howard Zehr. ele foi uma das bases para a elaboração do meu TCC, e nesse livro o autor propõe a justiça restaurativa como método para aprimorar os sistemas judiciários.
ele discorre sobre como a nossa visão de mundo, baseadas em nossas experiências, nossas dores, condições materiais, crenças religiosas, buscas individuais e identificação cultural, servem como lentes para observarmos a realidade.
a depender da lente que utilizamos, vamos estar mais focados em certos aspectos da vida. por exemplo: se você cresceu em um ambiente onde seus talentos eram incentivados e valorizados, você pode enxergar o contato com a arte como essencial ao bem estar, ao passo em que uma pessoa que cresceu em um ambiente muito limitado em recursos, tende a valorizar mais habilidades práticas e de sobrevivência, identificando essas como essenciais ao bem estar.
mas as lentes podem ser bem mais sutis do que as coisas que valorizamos. o nosso próprio idioma serve como uma lente. o português, sendo um idioma que surgiu em uma região onde muitas trocas comerciais aconteciam, desenvolveu-se do latim e também apropriou-se de termos de várias outras línguas, tornando-se muito abrangente e versátil.
em português, conseguimos expressar emoções e ideias com um nível de complexidade que nem sempre é encontrado na tradução para outros idiomas – e digo isso com experiência, porque também trabalho como tradutora jurídica e literária.
e porque temos esse repertório, enxergamos o mundo com essa complexidade: as coisas não são preto no branco, há várias nuances e vários jeitinhos brasileiros entre o certo e o errado.
o inglês já é um idioma de estruturação bem mais simples, em que alguns sufixos são suficientes para mudar todo o sentido de uma frase. quem fala inglês me parece ter uma visão um pouco mais objetiva das coisas, por vezes até utilitária.
em português, dizemos que “estamos” tristes, ou seja: essa é uma condição em que nos encontramos. daqui a pouco, podemos estar menos tristes ou até felizes. em inglês, dizemos “I am sad”, o que traduzindo literalmente para o português, significa “ser” triste, se identificar com essa condição. claro, na hora de traduzir, traduzimos para nossa expressão, então “am” se torna ser ou estar, mas para um nativo de língua inglesa, essa diferenciação não existe.
no irlandês, a tradução fiel para essa mesma expressão se aproxima de dizer que “há tristeza sobre mim”, ou seja, a tristeza é percebida como um fato externo ao meu ser. imagino, nunca tendo falado irlandês, que isso afaste dos irlandeses o peso da culpa por se sentirem tristes.
o pesquisador Jules Davidoff realizou um estudo relacionando o idioma falado e a visão das pessoas: ele constatou que, desde a antiguidade, algumas civilizações não tinham uma palavra em sua língua para descrever a cor azul. na Odisseia, de Homero, o mar era descrito como cor de vinho, por exemplo.
então ele selecionou dois grupos de pessoas. no primeiro, todos os integrantes cresceram falando idiomas que têm uma palavra para descrever a cor azul, e no segundo, as pessoas cresceram falando um idioma que não tem a palavra azul, especificamente.
Davidoff mostrou para esses dois grupos uma imagem com vários quadrados de cor verde, sendo apenas um desses quadrados azul. pediu para que os integrantes dos dois grupos distinguissem o quadrado diferente. o primeiro grupo conseguiu distinguir facilmente o quadrado azul, enquanto no segundo grupo, vários integrantes sequer conseguiram perceber um quadrado de cor diferente.
há também lentes eventuais, que colocamos para observar aquilo pelo que nos sentimos ameaçados. a ridicularização é uma delas.
quando uma pessoa, um grupo ou uma causa é tratada com deboche, com tom de ridículo, se está contendo parte do poder que aquele indivíduo, coletivo ou ideia tem. essa lente é usada e reproduzida muito recorrentemente pela mídia, quando o objetivo é afastar as pessoas de determinados comportamentos.
em sociedade, assistimos os gays e as lésbicas através dessa lente nos anos 2000; mais tarde, assistimos as feministas serem satirizadas na internet, e até hoje vemos vários grupos vulneráveis sob essa mesma ótica.
ridicularizar é uma arma muito poderosa de contenção, porque ela incita o sentimento da vergonha, e a vergonha, dentre todos os sentimentos, é um dos mais difíceis de ser enfrentado e superado pra muitas pessoas. a vergonha nos trava. por isso acho sempre válido lembrar que sempre vai existir sucesso em enfrentar essa emoção.
a linguagem científica é outra lente que podemos usar pra ver o mundo. acho bonito como vários cientistas, principalmente os biólogos, experienciam a magia de um mundo muito real, que acontece incessantemente diante dos nossos olhos, sob as nossas peles e pra além da atmosfera.
também a psicologia é uma linguagem, assim como a astrologia é uma. são duas lentes que partem de princípios diferentes, mas que podem ter objetivos comuns.
“ah, bibi, mas astrologia não é ciência!” não é, e nem tenta ser. a astrologia existe há mais de 10 milênios, tendo seus primeiros registros (pelo menos, os conhecidos) datados lá na mesopotâmia. imagine um conhecimento sobreviver por 10 mil anos? me encanta isso, pessoalmente, na astrologia.
eu mesma a utilizo como lente pra olhar pro mundo porque ela ajuda a identificar padrões e a elaborar sobre eles; mas nem todo mundo tem afinidade com todas as linguagens ou lentes disponíveis. e que bom! o interesse deve mesmo pertencer a cada um, individualmente.
a religião também é uma lente, e a depender da relação que estabelecemos com essa linguagem, podemos encarcerar nossa visão de mundo a seus conceitos, estreitando demais o alcance da nossa percepção a dogmas e comandos que não necessariamente funcionam para nós, pessoalmente.
eu, que tenho pouco conhecimento sobre saberes africanos, encontrei o trabalho do Élie Fiogbé em 2023, e me marcou muito algo que ele disse sobre o amor: de acordo com ele, o amor é ensinado e explicado ao longo da infância; ele não é um conceito implícito que é cobrado das crianças em relação aos seus pais, avós e comunidade. as crianças são quem, eventualmente, assimilam se amam ou não a alguém.
essa é uma lente interessante de se usar pra observar e até sentir amor. será que nós, no bom e velho português, nas heranças católicas da colonização e na pressa da vida contemporânea, não estamos usando lentes muito sujas pra amar?
outra lente que não posso deixar de mencionar é a pobreza. quando você cresce precisando sobreviver, sem acesso à segurança financeira ou, pior, sem acesso à segurança de fato, é difícil enxergar o mundo através de lentes otimistas ou mesmo espiritualizadas.
o pobre sobrevive o mundo, ele não vive a vida. e por que importa, pra mim, saber disso? porque embora a decisão de ver o mundo sob novos ângulos seja nossa, individualmente, precisamos nos conscientizar de que nós não temos acesso às mesmas lentes que os outros, pelo menos não de imediato.
nossa visão de mundo é sempre, em algum nível, limitada ao alcance da nossa experiência e repertório. mas sempre podemos evoluir, sempre podemos expandir um pouco mais a nossa vista.
é possível limpar nossas lentes para enxergar o mundo com mais tolerância, otimismo ou praticidade, a depender de nossas necessidades mais urgentes. um recurso que funciona pra mim é a CNV, mas pra você podem ser outras coisas né?
eu gosto de uma citação de Marshall Rosenberg, que diz “julgamentos são apenas necessidades não expressas de uma pessoa". tento me perguntar que necessidades minhas não estão sendo reconhecidas ou atendidas sempre que eu olho para algo com medo, com desdém ou com desrespeito.
isso me ajuda a olhar para minhas próprias hipocrisias, a aquietar minhas angústias em relação às coisas, mas também a me colocar num lugar de poder em relação ao que eu estou enfrentando.
de todas as lentes que usamos pra observar a realidade, o nosso idioma e as linguagens que escolhemos são, na minha opinião, as que têm um efeito mais direto na modelagem da nossa percepção do mundo e também das pessoas ao nosso redor.
e não só as abordagens, mas as coisas que efetivamente comunicamos e expressamos têm um impacto direto na maneira como experienciamos a realidade.
o arcano 1 do tarot, o mago, fala sobre linguagem, percepção e sobre como aquilo que pensamos, em outras palavras, aquilo em que focamos nossa atenção, se materializa em nossas vidas.
ele aponta uma varinha para o céu, para lembrar sobre a importância de filtrarmos nossos pensamentos, de assumirmos o controle deles, e de escolher nossas linguagens com cuidado; e com a outra mão aponta para o chão, criando essa ideia de causa e efeito: aquilo que eu penso e falo, se torna aquilo que eu experiencio, aquilo que eu vivo.
o mago nos lembra também que não cabe a nós julgar a qualidade da linguagem (ou da lente) usada pelos outros, quem sabe, essa é a única que está disponível para eles.
a depender das nossas abordagens, a gente foca a nossa percepção em certas ou outras coisas, por isso é importante assumir responsabilidade pela nossa linguagem, pelas nossas lentes. por mais que estejamos imersos em lentes específicas, podemos escolher mudar.
uma das formas que encontrei pra dominar um pouco melhor meus pensamentos e administrar a qualidade deles, foi fazer afirmações produtivas. pra quem ainda não conhece, no meu youtube e podcast tem uma série de áudios com afirmações que eu desenvolvi pra ajudar (a mim e aos outros) a criarmos padrões de pensamento capaz de produzir bons resultados.
fazendo essas afirmações, você começa a observar seus problemas sob ângulos mais práticos e também mais cheios de auto-compaixão, se é que esse termo existe.
ah, e você pode aprender a ler o tarot através da abordagem não-violenta comigo no clube do tarot!
tem link pra tudo isso e também para os meus livros, pro meu substack e pras minhas redes sociais aqui. tcha-au!